Estamos cansados porque não podemos ser preguiçosos
Li Byung-Chul Han e lembrei da Natalia Ginzburg
Chegou até a minha mão um livrinho muito famoso, A sociedade do cansaço. Digo livrinho porque tem 128 pequenas páginas, mas é uma leitura muito precisa (e o fato dele ser tão pequeno chega a ser até complementar à temática abordada — o que é um pouco engraçado). Eu não vou fazer resenha do livro porque vocês encontram gente mais competente que eu fazendo isso internet afora, mas vou falar de partes que mais me instigaram e que — acredite — me fizeram pensar muito na minha autora favorita, a Natalia Ginzburg. Recentemente li um livro de ensaios dela com um texto em especifico que me tocou muito, sobre a preguiça da qual ela sempre sentiu muita vergonha e que a fazia acreditar que era menos competente que os outros (a Natalia Ginzburg, veja bem). Depois eu volto na Natalia.
Desse livro do Chul Han poderia-se ficar horas conversando numa boa mesa de bar: achei muito legal pensar que o sujeito hipervigilante e capturado pela avalanche de informações das redes sociais é um retrocesso evolutivo, já que quem não podia descansar por minutos eram os nossos parentes lá da época das cavernas, cujo menor deslize poderia ser fatal. Os avanços da indústria hoje nos permitiriam muitas horas de descanso, não fosse o capitalismo, claro, mas temos usado nosso pouco tempo livre para 1. “auto-aperfeiçoamento” a partir de gurus da internet que prometem exercícios capazes de alinhar corpo e mente, desejo e realidade; 2. bisbilhotar a vida de pessoas que nem sequer conhecemos e que produzem conteúdos sobre o que comem, o que vestem, para onde viajam e como VOCÊ pode chegar até uma vida daquele jeitinho, se correr bastante atrás dos seus sonhos (prepare as pernas) ou 3. os charlatanismos mais diversos que cabem dentro do guarda-chuva do autocuidado: skincare, yoga, leitura (que de tanto ver vlog de booktuber eu tendo a achar que ninguém mais está lendo de verdade), matchá (fala sério, quem toma isso, você toma? eu nunca tomei) e versões de brigadeiro que substituem leite condensado por abacate, abóbora, banana (spoiler: nenhuma delas é brigadeiro). Esse excesso de positividade, diz o Chul Han, essa busca alucinada pela melhor versão de nós mesmos gera ansiedade, burnout e depressão, além de fragilizar a perspectiva de coletividade, a busca por um bem comum. Vivemos um período pós-marxista, diz o autor, em que o trabalho não mais aliena o sujeito, mas ele próprio explora a si mesmo na esperança de que isso vá torná-lo uma pessoa mais realizada.
E onde entra a Natalia Ginzburg? Em contraposição à depressão, a doença do nosso tempo, que gera inércia e destrói o senso de coletividade (não raras vezes levando ao rompimento extremo do indivíduo com o seu grupo, o suicídio), o Chul Han observa que a melancolia, essa forma mais antiga de sentir as coisas, estava ligada ao vínculo, ao outro, associada a perdas, ao luto. E, ao contrário da depressão, a melancolia não gera inércia: é o próprio motor da nossa vida. Amamos as coisas porque sabemos que podemos perdê-las. A melancolia, em muitas ocasiões, produz as mais finas obras de arte. Então eu lembrei da Natalia porque ela é uma baita melancólica e, além de tudo, uma desajustada, uma “preguiçosa”. Tomando por preguiça o ato de se negar a ser a melhor versão de você mesma. E nesse texto dela ao qual me refiro e que se chama A preguiça e está no livro Não me pergunte jamais ela escreve: “Salvo criar filhos, fazer as tarefas domésticas com lentidão extrema e inaptidão e escrever romances, não havia feito mais nada na vida”. Ela não está sendo irônica hahahah, e continua: “Sempre fui muito preguiçosa. Minha preguiça não consistia em dormir até tarde de manhã (sempre acordei com o amanhecer e nunca tive dificuldade em me levantar), mas em perder um tempo infinito com o ócio e a fantasia. Era por isso que eu nunca concluía um estudo ou um trabalho” (p. 30). Esse é um ensaio dela sobre uma época da vida em que ela estava há um tempo longe do mercado de trabalho “só” escrevendo romances e criando filhos sozinha porque o marido tinha sido assassinado. Natalia fugia da perseguição nazista no meio disso tudo e tinha vergonha e medo de que as pessoas descobrissem esse grande segredo dela, essa preguiça enorme que ela sentia. As muitas horas que ela passava fazendo nada.
Foi a preguiça da Natalia e a sua melancolia que tornaram sua obra tão original, sensível e atemporal. Se ela estivesse ocupada demais se auto-aperfeiçoando e buscando a melhor versão dela mesma ou indo atrás de cura para a tristeza que sentia, haveria Léxico Familiar? Eu acho que não. Meus artistas favoritos seguem sendo aqueles e aquelas que se apresentam com a cara lavada, o gatinho no colo e falam da vida, das relações com os outros, do que perderam e do que só se deram conta que era felicidade quando já era tarde demais. Gente que na vida perdeu parentes, fracassou e não ia bem na escola. Gente que não está com a academia e com a terapia em dia, mas que presta atenção de verdade no que as outras pessoas dizem, e não responde, mas fica horas pensando, horas fazendo nada e reinventando o mundo em sua formidável cabeça preguiçosa.