Eventualmente, não tem jeito, todas as estrelas acabam morrendo. As mais massivas, gigantes com várias vezes o tamanho do sol, são as primeiras a falecer e aí talvez esteja a primeira lição (e a mais clichê): tamanho não é documento. As estrelas menores conseguem economizar por dezenas de bilhões de anos seus estoques de energia e as grandes, umas festeiras, vivem intensamente (custa caro a beleza e a pompa), e explodem em apenas alguns milhões de anos, um piscar de olhos na dança cósmica. Não tem posto de abastecimento no espaço: quando acaba o hidrogênio para se converter em hélio formando luz e calor, bum, adeus estrela, foi bom te conhecer. Mas é aí que toda a mágica acontece.
Quando se encerra o ciclo de vida de um desses astros, há vários desdobramentos possíveis, a depender do tamanho dele. Eu acho a morte de uma estrela um evento muito bonito. Um dos funerais mais dramáticos e interessantes é quando a estrela explode e dá origem a uma supernova, expulsando uma parte dela para o espaço (aqueles gases, aquele monte de cor) e reduzindo seu núcleo de forma bem compacta, tão compacta que ele fica super denso. Uma colherinha de estrela de nêutrons, que é essa estrela moribunda e resignada que fica no interior da supernova, pesaria milhões de toneladas. A gente é feito de pó de estrela, vocês sabem, isso é algo que todo mundo fala. Todo ano milhares de toneladas de poeira cósmica caem sobre nossas cabeças, sobre as plantações, o mar, tudo coberto de estrelas. Será que guardamos essa memória, eu me pergunto, sobre como sobreviver projetando no infinito espaço o que temos de melhor? Vocês também sentem que às vezes a gente atira para o exterior o que temos de bonito e valoroso e guardamos bem guardadinho o peso do que é feio e vergonhoso? Não sei vocês, mas eu sinto, às vezes, que uma colherinha do que escondo no meu coração pesaria mais que uma estrela de nêutrons.
Mas que cafonice esse texto comparando coração e supernova. Calma que fica pior. Pois eu agora gostaria de interromper a palestrinha interestelar (repleta de imprecisões) para contar um sonho que tive há alguns anos. Desses sonhos emblemáticos que margeiam a vida feito mata ciliar. No sonho, a doceria Sodiê tinha feito um bolo inspirado na pessoa que eu sou (sonho muito com comida). No bolo Carolina, vamos chamá-lo assim, havia uma cobertura suave de chantilly batido com morango, num equilíbrio bem delícia entre doce e azedinho. A camada intermediária do meu bolo tinha um pé de moleque muito duro, quase inquebrável. O bolo era como um planeta, redondo, e o núcleo dele era uma bolinha de chocolate muito, muito amargo. A atendente comentava comigo: “não é todo mundo que gosta” e eu comia um pedaço e achava bom.
Penso em mim, no bolo e nas supernovas. No último dia dezoito completei trinta e quatro anos, se tudo der certo ainda vivo mais uns cinquenta, bem menos que os bilhões a que estão condenados os astros - e os deuses. Ainda assim, mais uma vez me pergunto, pretensiosamente, se temos algo em comum, eu, os astros e os deuses, algo que nos conecte na faísca de tempo que passamos juntos. A fúria, a solidão ou a insegurança, quem sabe. Cada um a seu modo, todos apavorados com o esquecimento.
Na mitologia grega, a personificação do Sol é o deus Hélio, que todos os dias surgia no céu em sua carruagem de cavalos de fogo que o conduziam até o oceano para que a noite começasse. Hélio era vaidoso e rigoroso, era também o deus da onisciência, e teve uma porção de filhos, como é do feitio dos deuses, e quase nenhum o suportava. De seus filhos, minha favorita é Circe, poderosa deusa da feitiçaria, exilada em uma ilha por desafiar seus pares. Circe tinha o hábito de transformar homens em porcos (adoro), vivia cercada por animais selvagens como leoas e era versada nos mais diversos encantamentos, conhecia o poder das plantas e as transformava em infalíveis poções mágicas. Transmutou toda a tripulação de Ulisses e só não conseguiu vencer o herói grego porque homem ajuda homem e ele foi alertado por Hermes a se proteger da deusa.
Não pareço muito com Hélio, mas talvez tenha algo em comum com sua filha; nós duas moramos em uma ilha e vivemos sozinhas no meio do mato. Tenho minhas feras selvagens também, três gatos travessos que moram comigo e mais dois do quintal que eu alimento. Nunca transformei um homem em porco (lamentavelmente, ainda não desenvolvi de tal forma minhas habilidades de feiticeira, um dia chegamos lá). Mas eu sou feita de poeira estelar e ela não, não sei de que matéria são feitos os deuses. Ser feita de estrela faz com que eu me sinta especial de um jeito que talvez Circe não tenha conhecido. Uma poeira magnífica, rica, cheia de memória de tudo que é belo e enorme e triste. Um dia me lamentava com alguém sobre não ser mais a estrela da vida de ninguém e a pessoa me disse: você tem que ser a estrela da sua vida. As estrelas ficam lá brilhando e sendo bonitas e sendo sozinhas e um dia, milhares de anos luz depois, a gente as conhece, dá nome, elas fazem sentido pra gente, formam bichos no céu, guiam até o menino Jesus, a gente faz pedidos e, de repente, aquela solidão vira um pouquinho de esperança onde a gente pode até descansar.
Se eu fosse uma estrela, ia prestar atenção nos pontinhos insignificantes do planeta insignificante e azul. Eu me alimentaria de seus desejos, sonhos, angústias, esperanças, arrependimentos, vergonhas, vaidades, segredos, tudo que os pontinhos experienciariam ao olhar para mim. Guardaria até o dia da minha morte, quando explodiria solenemente e faria jorrar no espaço uma matéria linda e sinistra cheia de intenção, resiliência, medo, liberdade e prazer. Faria brilhar no céu até chegar a quem precisasse, então me recolheria em meu núcleo denso e firme e, depois, seria o enorme silêncio.
que coisa mais linda esse texto!!! eu fiz um curso de constelações tupi guarani, e eles tem o entendimento que assim como olhamos pro céu, também somos olhados de volta…me lembrei várias vezes dos ensinamentos ao ler seu texto! incrível!